quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O Governo, o PSD e o CDS, e todos os apoiantes do “ajustamento” na versão troika-Gaspar-Passos, obtiveram uma importante vitória política ao levarem o PS a assinar um acordo a pretexto do IRC. Foi um dia grande. “Rejubilai”, dizem os anjos do “ajustamento”. Dizem bem.

Nesse mesmo dia, os professores contratados foram abandonados pelo PS, que apenas pediu uma pífia “suspensão” da prova, e os trabalhadores dos Estaleiros de Viana, que marcharam pelas ruas de Lisboa com as suas famílias, a caminho da miséria, não merecem nem um levantar de sobrancelhas dos doutos conselheiros económicos do “líder” Seguro. O PS, que tinha já enormes responsabilidades na situação actual de ambos os sectores profissionais, agora mostrou de novo por que razão não é confiável como partido de oposição, mas, pelo contrário, é confiável, pela mão de Seguro, para lá de muitas encenações, para os que mandam em Portugal, sempre os mesmos.

É que o acordo sobre o IRC não é sobre o IRC. O IRC, repito, foi o pretexto. Aliás, a pergunta mais simples a fazer, a óbvia, aquela que a comunicação social, se não estivesse subjugada à agenda e aos termos dessa agenda do poder político dominante, faria é esta: por que razão é que um acordo deste tipo não veio da Concertação Social, mas de conversações entre os dois partidos? Por que razão é que o Governo nunca esteve disposto a fazer este tipo de cedências diante da CCP ou da UGT, já para não dizer da CIP e da CGTP, mas está disposto a fazê-lo com o PS? Ou, dito de outra maneira, que vantagem tem o Governo em fazer este acordo com um partido da oposição e não com os parceiros sociais? Ou ainda melhor: o que é que o PSD e o CDS obtiveram do PS que justificou este remendo, aliás, pequeno e de pouca consequência, na sua política? É que, convém lembrar, o Governo não precisava do voto do PS para passar esta legislação, e é por isso que o único ganho de causa é o do Governo.
 
O acordo foi um acordo político de fundo que amarra o PS a sistemáticas pressões governamentais e outras, para que passe a ser parte do “consenso” que legitime a actual política. O que está em causa é algo que seria, se as classificações ideológicas tivessem alguma correspondência com a realidade, inaceitável por um partido socialista, como o é para um social-democrata, moderado que seja. O sentido de fundo do “ajustamento” está muito para além do resolver os problemas mais imediatos do défice ou da dívida, mas traduz-se numa significativa alteração das relações sociais a favor dos senhores da economia financeira, em detrimento daquilo que a maioria da população, classe média e trabalhadores, remediados e pobres, tinham conseguido nos últimos 40 anos.
 
O que marcará com um rastro profundo Portugal para muitos anos é acima de tudo essa transferência de poder, recursos e riqueza na sociedade. Ela faz-se pela mudança de fundo no terreno laboral, com a aquiescência do PS – recorde-se que aceitou sem críticas o acordo assinado pela UGT –, com a fragilização das relações entre trabalhadores, o elo mais fraco, e o patronato, o esmagamento da classe média pelo assalto à função pública, aos salários, reformas e pensões. A destruição unilateral dos “direitos adquiridos” destinou-se não apenas a garantir essa enorme transferência de recursos, mas acima de tudo a enfraquecer o poder social dos trabalhadores, dos funcionários públicos, dos detentores de direitos sociais.
 
 No passado podia haver pobres, estes tinham, porém, a possibilidade de ter uma dinâmica social e política para saírem da pobreza, uma capacidade de inverterem as relações sociais que lhes eram desfavoráveis. Eram pobres, mas não estavam condenados à pobreza. Era isso a que se chamava “a melhoria social”, num contexto de mobilidade e num contrato social que permitia haver adquiridos. Agora tudo isso aparece como um esbanjamento inaceitável, e o que hoje se pretende é que os pobres, cada vez mais engrossados pela antiga classe média, sejam condenados à sua condição de pobreza em nome de uma crítica moral ao facto de “viverem acima das suas posses”, perdendo ou tornando inútil os instrumentos que tinham para a sua ascensão social, a começar pela educação, pela casa própria, e a acabar nas manifestações e protestos cívicos, as greves e outras formas de resistência social. É um conflito de poder social que atravessa toda a sociedade e que se trava também nas ideias e nas palavras, em que a comunicação social é um palco determinante, com a manipulação das notícias, a substituição da informação pelo marketing e pela propaganda. E o PS escolheu estar ao lado dos “ajustadores”.
 
Pode-se argumentar que a “cedência” do PS permitiu algum alívio às pequenas e médias empresas, e que por isso há um ganho de causa. Talvez, e isso seria bom, se fosse apenas isso. Mas o que o PS cedeu é muito mais do que isso: é um contributo decisivo para manter a actual política em tudo o que é fundamental, a começar pela prioridade do alívio às empresas e aos negócios em detrimento das pessoas e do consumo. O PS enfileirou no núcleo duro do discurso governamental, mais sensível às empresas do que às pessoas, aceitando que, a haver abaixamento dos impostos, ele deve começar pelas empresas e não pelos indivíduos e as famílias, pelo IRC e não pelo IRS e pelo IVA.
Eu conheço a lengalenga de que os benefícios às empresas, à “economia”, são a melhor maneira de beneficiar as pessoas, e que é a “vitalidade” da economia que pode permitir todos saírem da crise. Em abstracto, poderia ser assim, no nosso concreto, não é. Chamo-lhe "lengalenga" porque no actual contexto a inversão muito significativa dos poderes sociais torna muito desigual a distribuição de benesses oriundas deste tipo de medidas, reforça os mais fortes como um rio caudaloso e chega tardiamente e sem mudar nada, como um fio de água, aos que mais precisam. E a outra verdade que tem que ser dita é que este tipo de acordo no IRC vai tornar mais difícil que haja uma diminuição significativa do IRS ou do IVA, ou seja, quem vai pagar os benefícios a algumas empresas são outras empresas mais em risco e as pessoas e as famílias.

Numa altura em que a campanha eleitoral para as europeias e a, mais distante, das legislativas são já um elemento central das preocupações partidárias do PSD e do CDS, o PS deu-lhes um importante trunfo político, e um sinal de que não confia nas suas próprias forças para ganhar as eleições e muito menos governar sozinho. Um acordo PS-PSD feito pela fraqueza e assente na continuidade da política actual prenuncia apenas que, seja o PS, seja o PSD, a governarem em 2015, cada um procurará no outro um seu aliado natural, não para uma política de reformas, mas para garantir a política que interessa ao sector financeiro, que capturou de há muito a decisão política em Portugal. 
 
O PS de Seguro mostrou que não é confiável como partido da oposição e que ou não percebe o sentido de fundo da actual política de “ajustamento”, de que este abaixamento do IRC é um mero epifenómeno, ou, pelo contrário, percebe bem de mais e quer ser parte dela. Inclino-me, há muito, para a segunda versão. Seguro e os seus criaditos diligentes estão ali para servirem as refeições aos que mandam, convencidos que as librés que vestem são fardas de gala num palanque imaginário. Vão ter muitas palmas e responder com muitos salamaleques.
 
Estamos assim.