sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Guerra Colonial - Faz hoje 50 anos que teve o seu inicio...

“Estou da cor dos turras”

Ninda, Leste de Angola, 2 de Maio de 1970. Alguns militares banhavam-se no rio. O helicóptero de serviço de socorros na zona de Gago Coutinho sobrevoou-os, por brincadeira, em voo rasante. Ao subir, bateu com a cauda no chão e caiu. O piloto e o mecânico ficaram feridos no acidente.

A poucos quilómetros de distância, uma coluna militar de reabastecimentos partia de Gago Coutinho para o destacamento militar de Mussuma onde estavam aquartelados uma vintena de soldados. Picada difícil, sempre infestada de dificuldades – daí os militares que lá serviam raramente serem reabastecidos, o que provocava uma alimentação muito deficiente, onde predominava o célebre arroz com salsichas ao almoço e as salsichas com arroz ao jantar.

Poucos quilómetros percorridos, surgia o primeiro obstáculo: um engenho explosivo, de fabrico rudimentar, a que dávamos o nome de mina, imobilizava a viatura dianteira, uma Berliet. Dada a natureza deste tipo de viatura, bastante robusta, apenas se verificaram danos materiais e a perda de algumas horas preciosas para a pôr operacional. Destacou-se nesta emergência o Nunes, 1º cabo mecânico, que em gesto de solidariedade para com os camaradas condutores, sobrecarregados de serviço, seguia como voluntário na condução de uma viatura na marcha para o destacamento que aguardava o reabastecimento. Muito activo, em tronco nu, desenvolve enorme esforço para que a perda de tempo fosse diminuta. A transpiração, a areia suja da picada, o óleo da viatura puseram-no negro. E a sua voz fez-se ouvir: «Estou da cor dos turras. Portanto, em mim não tocam!».

Recomeçou-se a marcha. Muito lentamente, a coluna ia-se aproximando do destacamento. A picada era péssima. Muito arenosa e estreita, com o denso arvoredo da floresta a querer engolir-nos. A noite aproximava-se. Notava-se, em nós, uma certa tensão. Nisto, um estrondo enorme fez-se ouvir. Uma poeirada negra de pó e dinamite flutuava no ar. A última viatura da coluna, um frágil Unimog fizera accionar uma mina. Era conduzida pelo Nunes.

O Nunes ficou ferido. Fracturas múltiplas numa das pernas. Comunicou-se, via rádio, para Gago Coutinho, pedindo a evacuação do ferido. A resposta fulminou-nos. O helicóptero sofrera um acidente em Ninda, pelo que não eram possíveis os socorros no local da explosão. Teríamos que levar o ferido até ao destacamento e depois se veria.

Noite cerrada quando se chegou ao destacamento. Entretanto, num gesto de coragem, o piloto da DO, pequena avioneta de serviço em Gago Coutinho, levanta voo em direcção a Mussuma, na tentativa de evacuar o ferido, dando instruções para que a pista de aterragem fosse iluminada de qualquer maneira.

Sofregamente, os militares arrancaram capim, amontoando-o em volta da pequena pista, pegando-lhe seguidamente fogo. Estava encontrado o expediente para iluminar a pista.

A aterragem da DO dá-se no meio de grande expectativa e dificuldade. Mas conseguiu-se que o Nunes fosse evacuado para Gago Coutinho, onde seria possível alguma assistência, ainda que precária.

Na manhã do dia seguinte regressámos a Gago Coutinho sem qualquer acidente. Soubemos que, para a DO aterrar, a pista fora iluminada pelas várias viaturas existentes no aquartelamento e que, pela manhã, o Nunes havia sido evacuado para o Hospital Militar do Luso. Respirámos aliviados. É que, apesar de todas as peripécias, não contávamos ainda com qualquer morto em combate.

Dias depois, a notícia chegou-nos fria e brutal. O Nunes havia morrido, vítima de embolia…

Jorge Silva Santana


Este texto é uma homenagem a um camarada morto em combate. O Nunes. Um verdadeiro herói anónimo. Morreu porque se ofereceu como voluntário. Por solidariedade para com os seus colegas...















9 comentários:

  1. Magnífico testemunho Jorge. Essa é uma história que está ainda por fazer.

    Um grande abraço
    João Martins

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  2. Como diz o João Martins esta história levará muitos anos a ser contada. É lenta, a descrição por parte de muitos que participaram nela. Mas de vez enquando lá vem mais um documentário, filme ou peça de teatro. As escolas deveriam tratar este tema como muitos outros, para que novas gerações possam avaliar o sofrimento porque passaram os seus pais, avôs, tios, amigos.......
    Palma

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  3. É um facto que há um sentimento digamos de "vergonha" em se falar na Guerra Colonial. Não encontro motivos para isso porque é do conhecimento geral que a grande maioria dos jovens que para lá foram lutar não tinham alternativa. Só uma casta previligiada da nossa sociedade podia "fugir" da guerra...
    Hoje vão como voluntários para o Iraque e Afeganistão. E são heróis!!! Com salários milionários e condições que de maneira nenhuma existiam no tempo da guerra colonial. Enfim...

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  4. Estava em Gago Coutinho nessa altura no PAD 2096. Era o F.Mil. Martinho e infelizmente houve outros casos como esse. Só lamento não darem o valor devido a quem sofreu, no auge da nossa juventude.

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  5. Também conheço esse lado mau de Angola apenas porque havia guerra, cheguei ao sector de Gago Coutinho em 72 e sai de lá em 74, ainda existem muitos sentimentos negativos pelo nosso passado de arma a tiracole, mas nós não devemos nem tememos, apesar de ter sido obrigado, sinto orgulho em ter pertencido a uma geração que fez parte da história recente e que não nos deve envergonhar. A que companhia pertencias? também temos um blog onde divulgamos o nosso passado no leste de Angola www.cart3514.blogspot.com .
    um abraço
    carvalho

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  6. Em 1970 estava em Gago Coutinho o Bcaç.2886 "os leões do leste" faziam parte as Ccaç.2596/97/98, também andei por essas bandas, e há dias descobri na net, um rapazola que fez a travessia de àfrica em cima duma bicicleta, saiu de Luanda até Gago Coutinho e depois apanhou o barco a caminho do mussuma e da fronteira, atravessou a zambia o malawi e moçambique vale apena ver o site http://luandamaputobybicycle.blogspot.com/2010/04/angola-ultimos-dias-iii-luvei-lumbala.html
    João Ferreira

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  7. João Ferreira: o teu nome não me é estranho...

    O meu Batalhão era precisamente o 2886. Ccaç. 2597. Inicialmente estive no Luvuei (3 meses), depois Gago Coutinho (3 m.) e Ninda (12 m - o pior de todos os lugares...).

    Martinho: lembro-me da existência de um pelotão independente em Gago Coutinho. E de um episódio que aconteceu com um soldado desse pelotão. Num dia em que eu estava de serviço fui fazer a ronda nocturna pela povoação de Gago Coutinho passando pelos vários postos de vigilância. Quando cheguei ao posto da pista de aterragem não encontrei o sentinela! Os outros colegas dele estavam dormindo. Não era o turno de nenhum deles. Acordei-os e fui informado que quem devia de estar de sentinela se ausentou para a sanzala para, como não podia deixar de ser, ir dormir com a sua negra. Felizmente, um deles, conhecia a localização da cubata. Deslocámo-nos até lá e foi complicado. O tipo não queria sair de lá chegando a ameaçar-nos. Arrombamos a porta e trouxe-mo-lo de regresso ao posto de vigilância. Pela manhã bem cedo tinhamos que apresentar, pessoalmente, ao comandante do batalhão, um relatório escrito e oral sobre qualquer anomalia ou incidente. Um pouco antes, o meu camarada furriel miliciano desse pelotão independente, dirigiu-se a mim e me informou que tinha tomado conhecimento desse incidente. Disse-me que esse soldado até merecia que eu apresentasse queixa mas deixava a decisão para mim. Mas, subtilmente, acrescentou que apenas faltavam 2 meses para terminar a comissão do soldado. Já tinha decidido que não faria qualquer referência ao que se passou. Mas essas palavras vieram me ajudar. Afinal a solidariedade entre nós era uma evidência! Sendo Furriel Miliciano como podia "lixar" alguém? Ainda por cima prestes a terminar a comissão...
    Por acaso eras tu esse furriel miliciano que veio falar comigo?

    António Carvalho: já visitei o teu blog. E estive recordando as fotos do Leste. E deixei por lá um comentário. Um abraço a todos!!!

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  8. Amigo Jorge não fui de certeza. O meu pelotão era do Serviço de Material, e tínhamos os nossos postos de vigilância. Havia também um Pelotão de Morteiros que fazia segurança nessa zona, pois estava adstrito ao Batalhão. Por isso devia ser esse. Mas já que falas no assunto, ao fazer ronda apanhei alguns a dormir. O meu castigo foi particular, a terem de reforçar na limpeza das casernas. Um grande abraço para todos.

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  9. Jorge

    Uma página a Homenagear um valente que foi vítima terminal. Os demais, igualmente vítimas, vão morrendo sem que lhes seja dada tão só a Dignidade que o Estado (não a Pátria) lhes nega e negou ao longo dos anos.
    Estou seguro que, quando apenas existirem meia dúzia de Veteranos das Guerras do Ultramar, politicamente já é interessante valorizá-los a preço de saldo. Terão Honrarias inimagináveis e menções que seriam do colectivo que sofreu e viveu a Guerra.

    Bem hajas, Amigo

    Abraços

    SOL
    http://acordarsonhando.blogspot.com/

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